Pelé e outros boleiros negros negligenciaram – e relativizaram – por bastante tempo as ofensas que sofriam nos gramados por causa de sua cor. Sustentam a ideia de que o futebol vem sempre em primeiro lugar e que o jogador não deve perder o foco envolvendo-se em “questões banais” como o racismo.
Nem por isso deixam de ser vítimas do preconceito institucionalizado, sobretudo quando uma bola oferece ao torcedor a falsa sensação de que, em volta dela, vale tudo, vale qualquer estupidez. No fim da década de 60, o zagueiro Joel Camargo, tricampeão mundial com o Brasil em 1970, foi o primeiro jogador de expressão a se manifestar publicamente contra o racismo. Também jogava no Santos, de Pelé, que, ao lado de outros companheiros, preferiam se referir a Joel como um sujeito bronco e sistemático pelo fato de não aceitar ser inferiorizado por causa de sua cor.
Joel morreu no início deste ano, sozinho, no esquecimento. Mas o legado de sua luta volta a brotar com a postura firme de Aranha desde que sofreu injúrias raciais de torcedores do Grêmio. Mesmo vaiado no retorno à Arena, ele manteve a dignidade diante da truculência de alguns repórteres e reiterou a cobrança por punição severa aos agressores. A hostilidade de boa parte da torcida gremista no jogo de ontem comprova como o racismo permanece a alguns degraus abaixo do clubismo.o goleiro Aranha foi vaiado do aquecimento ao fim na Arena do Grêmio. Entrevistado, o goleiro santista disse ter enxergado na vaia um sinal de apoio aos atos racistas da semana retrasada. Vários bons jornalistas lamentaram a manifestação pela mesma razão enquanto a maior parte da torcida gremista considerou normal vaiar o pivô de um imbróglio que resultou na eliminação do clube na Copa do Brasil
Pois eu acho que todos têm uma parte de razão, mas para entender o que está em jogo será necessário ir um pouco mais fundo no caso e não ficar apenas no confronto Grêmio x Santos.
Comecemos então pela vaia em si. Aranha está coberto de razão na sua indignação. Foi a Porto Alegre para um jogo de futebol e acabou sendo chamado de macaco. Não apenas por uma menina, mas por várias outras pessoas. Recebeu o pedido de perdão da única que foi realmente pega com a boca na botija fazendo a injúria racial. Aceitou, mas não quis participar do teatrinho que nós da mídia tanto apreciamos. Ele não topou se encontrar com quem o agrediu, tudo certo. Alguns dias depois, pelos caprichos da tabela, volta ao estádio. E o santista toma uma vaia gigante, aí de todo o estádio. Não havia mais o “macaco”, a torcida usou ou mix de sempre com ofensas familiares e sexuais. Aranha leu isso como um ato de apoio ao racismo original.
O lado do torcedor é bem menos complexo. Torcedores em grupo têm a maturidade de crianças de colo. “Teve lá uma confusão envolvendo uma menina. O Grêmio foi tachado de racista e a gente ainda espirrou da Copa do Brasil por causa disso? Por que só a gente paga por isso se já houve outros casos de racismo, homofobia por aí? Por que perseguem o Grêmio? E aí vem de novo esse goleiro que provocou tudo e não quis receber as flores da nossa torcedora arrrependida? Aranha, viaaado, Aranha, viaaado!”
Não compreender o que move o torcedor é não entender o próprio futebol. Na análise rasteira do arquibaldo, Aranha é mesmo um vilão terrível. Trabalhadores pagam ingresso para soltar seus demônios nos estádios. Na Argentina, na Inglaterra. Pais ensinam aos filhos os palavrões mais cabeludos aos filhos nos estádios. Os pais mais “cabeça” explicam que os palavrões só devem ser usados nos estádios.
Seria realmente lindo se o torcedor gremista aplaudisse Aranha. Mostraria um civilidade, uma gentileza, uma sofisticação intelectual para assimilar toda a situação. Lamento, esses são artigos raros na sociedade brasileira.
A vaia não foi, portanto, nenhuma surpresa. O aplauso generoso jamais viria também por uma outra razão: além da sensação de injustiça por ter sido punido em um território em que a impunidade é a principal marca, para o gremista o racismo é invisível. Aliás, o gaúcho, de um modo geral, não enxerga o racista.
Há muitos anos a torcida gremista canta uma música que (des) qualifica o rival como macaco. Há anos o colorado (o branco, de preferência) “assumiu” a sua condição de "macaco". A imprensa, o ministério público, a polícia, a sociedade como um todo ou não via ou fingia que não via problema na “brincadeirinha do macaco”.
A ferida está onde sempre esteve, portanto. A diferença é que o band-aid da tradição tapava o problema. Só que o mundo mudou, o planeta passou a ser intolerante com a palavra macaco como sinônimo de gente. O Caso Aranha é uma ferida sem band-aid. Está lá, exposta, para quem quiser ver. O mais importante nessa história toda é saber que não se trata uma feridinha isolada, há outras. O racismo está na sociedade, no Brasil, no Rio Grande do Sul. Não é exclusividade do futebol nem da torcida gremista. Mas como alguns casos aconteceram pelas bandas do Olímpico e agora na Arena, nada mais justo que o combate começasse pelo Grêmio.
Estamos falando de torcida de futebol e de um problema complexo. O torcedor já é complexo por definição, um sujeito que se comporta de uma maneira quando está sozinho e de outra completamente diferente quando está em bando. É até ingênuo achar que essa figura, míope pela paixão clubística, seja capaz de compreender os significados da vaia da quinta-feira.
É mais ingênuo ainda achar que o macaco vai sumir de repente das cabeças gaúchas. Ele pode deixar de ser verbalizado agora pela comoção do caso, pela ameaça de novas punições. Mas o macaco ainda ficará pulando de neurônio em neurônio por algum tempo.
Tempo, aliás, é o único remédio para curar essa ferida que agora não tem band-aid para escondê-la. Tempo e consciência. A discussão toda tem um efeito poderoso, sobretudo para as novas gerações que frequentam os estádios. O macaco vai sumir, e só vai sumir porque estão insistindo em falar no assunto.
DEIXA EU EXPLICAR: ELA CHAMOU O GOLEIRO ARANHA DE MACACO, E DEPOIS O ARI DE BANANA. MACACO NÃO COME BANANA? ENTÃO GENTE! ELA SÓ QUERIA FUDÊ O ARI PÔ! NÃO TEM NADA COM DISCRIMINAÇÃO CARAMBA!!!...
*Em breve, o carnaval explica tudo, por Ricardo Reis.
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